Iberismo Pessoano: Refundação mítica da existência

Introdução:

Este ensaio tem por objetivo expor a vertente iberista na filosofia pessoana constatando, assim, a sua influência e papel chaves na construção identitária portuguesa e o seu enquadramento no plano civilizacional europeu. Contudo, é importante aclarar alguns conceitos chave, como Iberismo e as suas vertentes política e cultural. O iberismo é uma filosofia que se baseia na aproximação de Portugal e Espanha, dividindo-se, na sua componente política, que tem por base a implementação de políticas comuns que visem, a longo prazo, a integração de ambos países num só. Esta visão ganha um novo impulso nos séculos XVIII-XIX, com a revolução industrial, que conduziu à emersão do capitalismo como novo modelo produtivo e com a primavera dos povos em 1848. Com isto, podemos dizer que, estes dois fenómenos globais conduziram a duas tendências políticas no seio iberista.(1) Uma era a união por via dinástica, ou seja, na união das coroas portuguesa e espanhola, numa única coroa, sob uma monarquia liberal. Esta recolhia o apoio da burguesia, que nascera do novo modelo capitalista e de setores de alguma nobreza. A outra tendência bebe da primavera dos povos de 1848, tendo o republicanismo e o socialismo como bases ideológicas dominantes, pretendia a construção de uma república ibérica unida que respeitasse as diferenças culturais e linguísticas inerentes ao território.

Vamos encontrar na obra pessoana uma boa quantidade de textos ibéricos, principalmente durante os anos da Primeira Guerra Mundial, constatando um arrefecimento desta temática nos anos 20 e posteriores do século XX. Não obstante, é importante realçar que o Iberismo Cultural, vertente na qual se insere o iberismo pessoano, emerge já no século XX, com escritores, tendencialmente modernistas, como Fernando Pessoa e positivistas como Miguel de Unamuno.(2) Veremos, também, que daqui partirá a ideia de “refundação mística da existência” na filosofia pessoana.

Iberismo Pessoano: Refundação mítica da existência:

Como foi dito na parte introdutória deste ensaio o Iberismo pessoano reside no eixo cultural estando, assim, relacionado com as questões de identidade. Por isso, assistimos
ao questionamento da origem civilizacional da Ibéria, verificando uma relação com a ideia do Quinto Império e do mito sebastianista, procurando romper as barreiras conservadoras e nacionalistas dos integralistas lusitanos (3). Aliás, Pessoa tece duras críticas a este movimento chegando a dizer que o seu trabalho é desenvolvido sem qualquer tipo de lucidez e patriotismo que são a “honestidade da inteligência” e a “belleza da sensibilidade”(4) . É esta critica que conduz o nosso autor ao projeto da refundação mística existencial, pois, na filosofia pessoana, a questão da ibéria é uma questão identitária total, ou seja, é uma questão individual e coletiva. (5)

A ideia de refundação mística existencial abre a porta para um imperialismo futuro. Durante os anos da Primeira Guerra Mundial, nomeadamente nos anos de 1917 e 1918, Félix Lorenzo, então diretor do jornal El Imparcial, levou a cabo uma campanha de aproximação entre Portugal e Espanha. O autor dos heterónimos apercebeu-se desta campanha e é importante mencionar este feito, porque esteve na origem da grande produção de textos ibéricos pessoanos, que projetavam uma aliança ibérica. É importante referir que Lorenzo lança uma proposta intitulada de “ armonía ibérica”(6), que não mereceu a confiança de Pessoa nem de Miguel de Unamuno. De facto, Unamuno, em 14 de julho de 1917, num artigo publicado em Espanha no Seminario de la vida nacional, defende que o projeto de Lorenzo, a longo prazo, culminaria com a absorção de Portugal por parte de Espanha, vinculando a sua ideia à do imperialismo alemão. Em alternativa a este imperialismo materialista, Unamuno menciona uma “unión moral” que nasça da “soberania popular”(7). Esta união moral é apresentada como sendo o símbolo de unidade máxima, que se traduziria na construção de uma Confederação Ibérica, na qual a libertação das pequenas nacionalidades (8) é um marco de resistência perante um imperialismo de inspiração alemã, ou seja, materialista (9). Édesta noção de união moral que nasce o imperialismo cultural, tratado na questão do Quinto império português, permitindo a interrogação da origem civilizacional da Ibéria e, consequentemente, do enquadramento português nos planos civilizacional europeu e ibérico. O iberismo pessoano nasce desta problemática identitária.

“Para determinarmos precisamente qual a cultura portugueza temos de determinar primeiro qual a cultura característica do grupo ibérico, temos de estabelecer primeiro qual a cultura geral da civilização christã, da qual o grupo iberico é uma modalidade especial(…)” (10) Com este excerto, podemos inferir que o Iberismo Pessoano é uma componente da filosofia estética pessoana na tentativa de dar uma explicação global do que é a cultura portuguesa. Para melhor podermos compreender este processo é importante olhar para o texto Tentativa de esboço da psyque ibérica. Neste texto Pessoa constrói termos como “grupo civilizacional” e dá uma nova perspetiva aos conceitos de “civilização” e “nação”, através de uma relação simbiótica entre eles. Fernando Pessoa considera que um “grupo civilizacional” só terá sentido se este tiver consciência de si mesmo, ou seja, da sua existência: “Um grupo civilizacional é tanto mais util quanta mais a consciencia tem de si-proprio como grupo” (11). Fazendo uma alusão ao “grupo civilizacional ibérico”, Pessoa diz-se esperançado que a sua obra possa contribuir para esse efeito , ou seja, o de tomada de consciência: “ Creio que todo o verdadeiro iberico, uma vez tenha lido isto, reconhecerá a voz intima da sua alma, o que com o seu instincto sempre inconstante pensou e quiz” (12). É neste contexto que Pessoa dota o conceito de nação de uma realidade afirmando que pode ser “varios generos de agrupamentos humanos”(13) , que uma civilização é composta por diversos agregados de grupos civilizacionais(14) e que um grupo civilizacional é uma “confederação espiritual” (15). Comisto, podemos ver que temos numa primeira instância a nação, depois os grupos civilizacionais(16) e, por fim, a civilização, estabelecendo-se, assim, uma relação dialética chave para a compreensão da temática a ser tratada.

Pessoa, ainda, acrescenta que os “grupos civilizacionais” podem, também, ser considerados uma síntese civilizacional, afirmando que o grupo civilizacional ibérico é a síntese civilizacional da Grécia e Roma antigas tendo como elemento diferenciador o árabe. É este arabismo inerente ao território ibérico que permite a autonomização do grupo civilizacional ibérico, face a outros como o latino por exemplo, dando-lhe um lugar próprio na civilização europeia. Dentro do grupo civilizacional ibérico Pessoa destaca as nações de Portugal, Espanha e Catalunha, atribuindo uma função a cada uma destas no seio do grupo. A Portugal caber-lhe-ia a função de promover um espaço cultural forte, sendo uma nação emissora de civilização; Espanha transformaria e difundiria as diferentes individualidades culturais sendo, por isso, distribuidora; a Catalunha teria que moderar e segurar as identidades do grupo civilizacional sendo, assim, mantenedora(17). Antes de avançar para a última parte do ensaio, é de relevo mencionar a importância do conceito de “síntese” nos textos de Pessoa sobre a Ibéria(18). Em Pessoa, os grupos civilizacionais “confederações espirituais”, como foi dito anteriormente, sendo por isso sínteses de impérios. No caso ibérico, seria a síntese do Mediterrâneo e do Atlântico, não deixando no olvido as civilizações árabes e pagãs. Em suma, o “sentido da syntese iberica”(19) encontra-se na chance do grupo ibérico poder expressar uma base comum, que aqui seria, uma romano-árabe, ou seja, uma síntese cultural de base greco-romanoárabe. É o caracter sintético inerente à Ibéria que lhe permite, apesar das pressões externas, criar uma espécie de civilização que “resumiria todas as civilizações passadas, guiando-se por principios importados, cosmopolitas” (20).

Para concluir, é de relevância mencionar a unidade e diversidade do projeto iberista pessoano. Fernando Pessoa tinha consciência que o seu projeto sofreria obstáculos internos(21) e externos(22) . É nesta realidade que o imperialismo cultural solidifica as suas bases tecendo, pela voz de Pessoa, uma proposta confederativa cultural, e não política, que permitisse a independência das nações ibéricas, afastando cenários como a anexação de Portugal a Espanha e a hegemonia desta sobre os povos ibéricos. A unidade política dá lugar à espiritual. No texto nº 30, 97-10, do livro Ibéria, Pessoa propõe o fim da Espanha como a conhecemos, ou seja, voltamos à ideia de Unamuno, mencionada anteriormente, na qual as pequenas nacionalidades, simbolizando o fim da Espanha como a conhecemos, seriam a base de construção desta união moral e cultural.

Não obstante, e em jeito de conclusão, o projeto Iberista de Pessoa tem muito presente o mito sebastianista, na medida em que este escreve o regresso de D.Sebastião significa um reinado “ sobre todas as Hespenhas”(23) e a “intima unidade da Iberia”(24). A construção do imperialismo cultural como base filosófica e basilar no Iberismo Pessoano, é a aplicação direta do Quinto Império, que mesmo tendo como nação emissora de cultura Portugal, jamais se poderia esquecer da nação difusora dessa cultura, Espanha.

Bibliografia:

  • Crespo, Angel. 1985. “El Iberismo de Fernando Pessoa.” EL Pais , 5 de Julho.
  • Pessoa, F. (2012). Ibéria, Introdução a um imperialismo futuro. , página 11,(J. P. López, Ed.) Lisboa, Portugal: Ática Prosa .
  • Todas as obras mencionadas em nota de rodapé são-no no livro Ibéria, 2012.

Notas:

  1. Pessoa, F. (2012). Ibéria, Introdução a um imperialismo futuro. , página 11,(J. P. López, Ed.) Lisboa, Portugal: Ática Prosa.
  2.  Manuel Padilla Novoa. Unamuno. Madrid: Ediciones del Orto, 1994.
  3. O integralismo lusitano foi um movimento monárquico de corte tradicionalista e conservador,
    desenvolvendo a sua atividade entre os anos de 1914 e 1932. Estiveram muito ativos no tempo do
    Sidonismo e no Golpe Militar de 28 de Maio de 1926.
  4. Sensacionismos e Outros Ismos, 2009:298.
  5. Fernando Cabral (2010)
  6. A harmonia ibérica é uma ideia que suscita a união aduaneira e as alianças política e militar entre os
    países ibéricos.
  7. Unamuno, 1917:7
  8. Alusão a Galiza, País Basco e Catalunha
  9. Imperialismo alemão é materialista na medida em que recorre à conquista militar como forma de
    união e agregação, opondo-se vivamente à ideia de união moral proposta por Unamuno e corroborada
    por Pessoa.
  10. Texto nº39 (55F-50)
  11. Texto nº16 ( 97-7)
  12. Texto nº16 (97-9)
  13. Texto 55B-85; Sobre Portugal, 1979:117.
  14. Fernado Pessoa, A ibéria 2012:17
  15. Texto
  16. Texto 40 (111-16)
  17. Fernando Pessoa, A ibéria 2012:18
  18. Fernando Pessoa, A ibéria 2012:18
  19. Texto nº6(97-5)
  20. Fernando Pessoa, A ibéria 2012:18; Texto nº3 (97-24)
  21. nacionalismos, por exemplo, e desejo de absorção por parte de Castela; Fernando Pessoa, A ibéria
    2012:19
  22. aliança portuguesa com a Inglaterra e a adoção de um imperialismo germanófilo castelhano;
    Fernando Pessoa, A ibéria 2012:19
  23. Sensacionismos e Outros Ismos, 2009:135
  24. Sobre Portugal, 1979:191

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